terça-feira, 21 de abril de 2009


O protagonista apanhara chuva, chega querendo uma bebida quente. Os chás acabaram. Não tem açúcar para pôr no leite morno que esquenta - tem que apelar para o café, que puro seria agressivo para a garganta irritada e seca. O escritor também não gosta da mistura. No terceiro ou quarto gole o estômago já começa a estranhar, mas vai até o fim. Assim vai me faltar assunto para os poemas, comenta de si para si.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Mira-se no espelho como antigamente. Levantara há pouco, não sabe bem o que procura o protagonista. Entretém-se com qualquer aspecto do próprio rosto - apesar de negar, ele sabe que se afogaria junto com Narciso. A claridade na parede do velho banheiro aumenta, o vão da porta se estreita e o personagem principal percebe a prisão doméstica que o escritor lhe idealiza.


sexta-feira, 10 de outubro de 2008

ESSE ESTÁ FORA DA ORDEM

Amassou e não rasgou o papel onde escrevera O BASALTO RUSSO. Os dias parecem poucos, mas independe das horas a serena volúpia do instante. Nem poderia dizer que esperava por isso - é como se soubesse, desde o primeiro distante afeto por aquele lugar, que seria também parte daquelas pedras. Uma vez teria sido bastante para estar lá para sempre. Meses idos, ainda tem nas vistas o ardor úmido de um cotidiano frio ar de verão. Escrevera algumas palavras no caderninho de notas. Enquanto o basalto, estanque e firme base da vida de um povo a quem o personagem principal se une, inscreve no peito deste protagonista a marca de um eterno anoitecer russo,antes soviético.
De tão mal pintadas, a penumbra colabora com as feias flores brancas do quadro levado ao chão por sua inutilidade - sua impropriedade. Daqui, a pétala de uma delas parece ser a cabeça erguida de um cão labrador, enquanto outra é uma segunda cabeça do mesmo cão, ambas e todas as outras movimentando-se e latindo. O pântano atrás dos animais combina com a insólita natureza de cada um deles, o que conforta o protagonista na busca por sentido na cena que não compreende. O cão de baixo o lembra da figura de um anjo, pelas asas, mas um anjo desfigurado e desagradável. O que pode ser alívio, sabedor o personagem principal de onde está hoje - do que inaugurou - o mais belo deles. Desvia o olhar para a esquerda e vê quatro cabeças de plantas carnívoras, mas cujos rabos são como do cachorro o primeiro. De boca fechada, o protagonista olha para cima para ver se algum inseto as faria abri-las, e o que vê é nesga de céu azul, vista que também o conforta, até pela banal e óbvia lembrança do fraco poema que o escritor uma vez escreveu.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Quem bebe rum é o protagonista. O cobre da bebida cubana contrasta com o cinza do céu nublado e poluído. As idéias podem estar encobertas, a alma pode estar não tão verde, mas o que é âmago no personagem principal persiste puro, malte transparente que impede a angústia de cobrir tudo com a fumaça quase invisível da aflição. O escritor observa, a meia distância. Tem no bolso uma edição britânica de "A insustentável leveza do ser". Ele não lembra ou talvez não saiba, foi em Praga que o protagonista reteve nas mãos o mesmo texto, lá na língua materna do autor. Agora, alguns meses passados de ter estado naquela capital novamente, ele põe o nome em "A metamorfose", livro que ganhou de uma mulher que não é a sua. Sabendo que o personagem principal se demoraria em fotos e mapas, o escritor foi rapidamente à livraria Kafka, e foi ali que comprou o exemplar que traz no casaco de lã sintética, forrado cor de vinho. O papel usado por ele para retirar o excesso de tinta da caneta - para não borrar a assinatura - parecia ter algumas boas frases escritas, mas o escritor ainda não conseguira brecha para descobrir o que lá ia posto. O telefone toca, a mulher contara outro dia das aranhas e do orixá. Houve um em que duas ou três passearam pelo bercinho dela, para susto da mãe. Com o protagonista atento ao telefonema e a música, despreocupa-se com o ruído e retira o Milan Kundera do bolso. Passa os dedos pelo lombo das páginas, vai procurar uma anotação antiga no verso da contracapa. Fica se perguntando por que e desde quando o livro está ali, ao ver a fina aranha esmagada bem no meio do papel cartão, que não está plastificado do lado de dentro.

Encolhido no canto de um sofá que não lhe pertence, nosso personagem principal anota um compromisso qualquer no primeiro papel que vê a mão. A tinta da caneta que usa é vermelha, e o escritor não consegue evitar o pensamento que ele mesmo rechaça, por sua banalidade. O sul de um a atingir o norte de outro e vice-versa, na embriaguês contínua que se inicia eles se perguntam e enxergam na percepção alterada o que seria e como seria o encontro sul-sul de uma fronteira twilight. O vinho tinto apreciado pelo protagonista é da mesma cor do sangue que aperta e atravessa o peito do escritor, a angústia de um entrelaçada com o alívio do torpor do outro. Aperta o copo, mas não chega a quebrá-lo. O escritor vê sua letra mudar e mudar e ser sempre a mesma inutilidade.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Amassou o papel onde antes escrevera o basalto russo, sem querer saber se lá outro verso talvez inacabado havia. Mencionara à mulher dos trajetos do leste, perguntou-se se foi dela um silêncio de inveja ou admiração. Descobrirá quando se deitarem outra vez, mas ela seguirá ignorante de por que tem com ele um sempre composto nome.