terça-feira, 2 de outubro de 2007

Quem bebe rum é o protagonista. O cobre da bebida cubana contrasta com o cinza do céu nublado e poluído. As idéias podem estar encobertas, a alma pode estar não tão verde, mas o que é âmago no personagem principal persiste puro, malte transparente que impede a angústia de cobrir tudo com a fumaça quase invisível da aflição. O escritor observa, a meia distância. Tem no bolso uma edição britânica de "A insustentável leveza do ser". Ele não lembra ou talvez não saiba, foi em Praga que o protagonista reteve nas mãos o mesmo texto, lá na língua materna do autor. Agora, alguns meses passados de ter estado naquela capital novamente, ele põe o nome em "A metamorfose", livro que ganhou de uma mulher que não é a sua. Sabendo que o personagem principal se demoraria em fotos e mapas, o escritor foi rapidamente à livraria Kafka, e foi ali que comprou o exemplar que traz no casaco de lã sintética, forrado cor de vinho. O papel usado por ele para retirar o excesso de tinta da caneta - para não borrar a assinatura - parecia ter algumas boas frases escritas, mas o escritor ainda não conseguira brecha para descobrir o que lá ia posto. O telefone toca, a mulher contara outro dia das aranhas e do orixá. Houve um em que duas ou três passearam pelo bercinho dela, para susto da mãe. Com o protagonista atento ao telefonema e a música, despreocupa-se com o ruído e retira o Milan Kundera do bolso. Passa os dedos pelo lombo das páginas, vai procurar uma anotação antiga no verso da contracapa. Fica se perguntando por que e desde quando o livro está ali, ao ver a fina aranha esmagada bem no meio do papel cartão, que não está plastificado do lado de dentro.