Quem bebe rum é o protagonista. O cobre da bebida cubana contrasta com o cinza do céu nublado e poluído. As idéias podem estar encobertas, a alma pode estar não tão verde, mas o que é âmago no personagem principal persiste puro, malte transparente que impede a angústia de cobrir tudo com a fumaça quase invisível da aflição. O escritor observa, a meia distância. Tem no bolso uma edição britânica de "A insustentável leveza do ser". Ele não lembra ou talvez não saiba, foi em Praga que o protagonista reteve nas mãos o mesmo texto, lá na língua materna do autor. Agora, alguns meses passados de ter estado naquela capital novamente, ele põe o nome em "A metamorfose", livro que ganhou de uma mulher que não é a sua. Sabendo que o personagem principal se demoraria em fotos e mapas, o escritor foi rapidamente à livraria Kafka, e foi ali que comprou o exemplar que traz no casaco de lã sintética, forrado cor de vinho. O papel usado por ele para retirar o excesso de tinta da caneta - para não borrar a assinatura - parecia ter algumas boas frases escritas, mas o escritor ainda não conseguira brecha para descobrir o que lá ia posto. O telefone toca, a mulher contara outro dia das aranhas e do orixá. Houve um em que duas ou três passearam pelo bercinho dela, para susto da mãe. Com o protagonista atento ao telefonema e a música, despreocupa-se com o ruído e retira o Milan Kundera do bolso. Passa os dedos pelo lombo das páginas, vai procurar uma anotação antiga no verso da contracapa. Fica se perguntando por que e desde quando o livro está ali, ao ver a fina aranha esmagada bem no meio do papel cartão, que não está plastificado do lado de dentro.
terça-feira, 2 de outubro de 2007
Encolhido no canto de um sofá que não lhe pertence, nosso personagem principal anota um compromisso qualquer no primeiro papel que vê a mão. A tinta da caneta que usa é vermelha, e o escritor não consegue evitar o pensamento que ele mesmo rechaça, por sua banalidade. O sul de um a atingir o norte de outro e vice-versa, na embriaguês contínua que se inicia eles se perguntam e enxergam na percepção alterada o que seria e como seria o encontro sul-sul de uma fronteira twilight. O vinho tinto apreciado pelo protagonista é da mesma cor do sangue que aperta e atravessa o peito do escritor, a angústia de um entrelaçada com o alívio do torpor do outro. Aperta o copo, mas não chega a quebrá-lo. O escritor vê sua letra mudar e mudar e ser sempre a mesma inutilidade.
quarta-feira, 19 de setembro de 2007
Amassou o papel onde antes escrevera o basalto russo, sem querer saber se lá outro verso talvez inacabado havia. Mencionara à mulher dos trajetos do leste, perguntou-se se foi dela um silêncio de inveja ou admiração. Descobrirá quando se deitarem outra vez, mas ela seguirá ignorante de por que tem com ele um sempre composto nome.
terça-feira, 18 de setembro de 2007
O personagem principal tem a seu lado um papel onde se
O bar era um bar simples, perto do metrô, provavelmente cheirando não tão mal quanto o quiosque de cachorro-quente meia quadra abaixo. Estava atravessando a rua quando ouviu os acordes, em amplitude diversa da habitual - era som ao vivo.
A canção bastante conhecida de uma cavalgada noturna. O cantor que empunhava o violão talvez tenha sentido um nó na garganta, ou apenas esquecera a letra no justo instante em que nosso protagonista por ali passava. O fato é que silenciou quando os versos que viriam seriam da mulher os versos - mulher pela qual o personagem principal já qualquer coisa.
Agora, na maciez etílica de uma madrugada vindoura, gosta da recordação antes soviética que tem sobre o peito, e sabe que outra vez pisará aquelas pedras russas. Onde num ameno crepúsculo de verão viu a si mesmo refletido numa umidade que nem sabe mais se era do verso do olho, do chão ou da névoa inexistente que sentia estar sobre o escritor que, silencioso e ausente, o acompanhava.
sábado, 8 de setembro de 2007
Fora mandado embora pela mulher, vivera na rua por uns tempos. Cada dia dormindo num lugar. O antigo projeto do harém lhe ajudou, isso não podia negar. Algumas torciam o nariz, outras não gostavam mesmo, mas o recebiam. Eventualmente, apelava para os amigos – esses, sim, se surpreenderam. O cara não era disso.
No trem foram poucas noites, menos do que nas estações. Das que passou fora de fato, o mais que fez foi cruzá-las desperto. Em muitas, um tanto bêbado – de não ter nem memória de uma meia dúzia delas.
Apesar do pouco estudo, se expressava bem. Tanto para complicar quanto para esclarecer. Quando bebia, misturava raciocínios complexos com outros mais simples. Num dos porres, conversou longamente com um outro ébrio que se escorava por ali. Havia até uma brisa, mas nada muito frio.
Esperto e bondoso, percebeu que o companheiro era pouco ilustrado. O que não impediu que fizesse a pergunta:
- Que passa?
- Pé na bunda.
- ...
- Contigo?
- ... o quê?
- Que que deu?
- Nem sei mais.
Influenciado por um livro qualquer e com uma palavra nova na boca, entra no banho. Lembra da mulher, mas não sente falta.
segunda-feira, 3 de setembro de 2007
domingo, 2 de setembro de 2007
Os paralelepípedos russos estão úmidos - não é da chuva dos dias anteriores, é apenas o anoitecer. São onze e meia, falta pouco para as doze. O antagonista anota qualquer coisa na espécie de diário que carrega. Será que não confia na própria memória? Descobrirá, como a nossa personagem principal, que certos ambientes e sentidos são mais fortes que nós mesmos.
Ela já havia chegado a essa conclusão, mas não será desonesto o pensar do aéreo voyer quando a vir trazendo a cabeça do queixo para o alto, respirando fundo e fechando os olhos, depois de mirar aquela lua mais uma vez. É quase medo o que brota do corpo, das vistas azuis da protagonista - será que terei em mim um pouco que seja do que sinto aqui?
Não, este que (sabe-se lá como) está entre o céu e o antagonista e a protagonista não erra ao supor ser esta a preocupação que acaba de se esvair da mente da jovem adulta; mas já bastante adulta.
A surpreende, agora, longos meses depois de ter estado lá, experimentar na plenitude do que é a intensidade do que viveu no eterno instante em que a Praça Vermelha era ela também. O antagonista, refém da nacionalidade, abandona o tio como quem nada contra uma corrente de sangue mesopotâmico, na tentativa brava e inútil de manter pelo menos a própria dignidade.
A improvável dupla vai embora, os toques das cochas e uma mão deixada cair pelo antagonista tenham talvez sido barrados também pela imponência unificada que está até - e principalmente - nas cortinas do Bolshoi.
- Niet!
É só o que entendem, mas compreendem muito mais do que isso.
No bloquinho, o nome de Lênin como no mausoléu, uma breve descrição da cena - em duas, três linhas. A sequência da ópera não poderia ter melhor final que um antagonista e uma protagonista neste cenário em que vistas femininas e um firmamento se admiram.
O chão está úmido, assim como dela os olhos. Não pelo frio - estamos no meio do ano.
quinta-feira, 23 de agosto de 2007
And in the rain, the bitter chill, the great throbbing city under
grey skies rushing faster and faster toward-what? - JOHN REED, Ten Days That Shook the World
sexta-feira, 27 de julho de 2007
terça-feira, 17 de julho de 2007
- Qual o autor que ainda não encontraste?, pergunta o brilhante dramaturgo no contundente programa de entrevistas.
Como qualquer telespectador, o personagem principal faz a si mesmo a pergunta. A obviedade chega a lhe incomodar, mas sorri.
Pedante, responde... de si para si.
domingo, 15 de julho de 2007
quinta-feira, 5 de julho de 2007
- Então serão duas, e não uma, que guardarei aí dentro.
terça-feira, 3 de julho de 2007
terça-feira, 26 de junho de 2007
domingo, 24 de junho de 2007
sábado, 23 de junho de 2007
Isso o escritor não vê, mas sorri o personagem principal. Sorri da dor que se espalha dos calcanhares para todo o pé a cada passada, sorri porque chega a tempo de não ter que esperar longos minutos para poder entrar novamente, e sorri porque se lembra do que acabou de fazer. Sorriso esse que colabora com a umidade dos olhos coloridos, mais aguados não só pela ardência da amena brisa que bate no rosto de ambos. Chega, e é recebido com uma preocupação que o enternece, cena que o escritor outra vez já não vê, pelas cortinas. Assim como não viu - ou não percebeu - quem abraçou e tomou conta do bêbado infeliz e inconveniente que atrapalhava a todos ao redor, lá onde tudo se deu. Aí está por quê, na bela manhã de sol seguinte, ficou sem compreender a expressão de surpresa do protagonista quando vê passar pelo corredor do trem lotado aquele provável mesmo cidadão. É de fato uma coincidência e tanto, mas não comenta nada com a mulher - a vista dela assim tão próxima logo o faz esquecer. Mais que isso, o escritor não consegue ver. Outra vez uma cortina, fechada pelo alemão desgostoso com o barulho da conversa.